quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Os Autoimunes



          A nossa turminha de Direito acabou sendo a única turma, onde a posse ou não do diploma do curso, não teve significado algum. Saiu de tudo: ator, atriz, empresário, diretor de teatro. Advogado? Nenhum. E, inclusive para o meu desespero, o mais talentoso e sarcástico deles foi para o seminário no segundo ano, e nunca mais o vimos. Virou padre. Seu sarcasmo nos brindou muitos zeros! Deve ter se transformado no mais engraçado e contundente pároco que jamais existiu!

          Que doutrina? Que jurisprudência? Vencer nas lides ou no capitalismo? Não mesmo! Debandamos pela vida. Hoje, o acaso nos reúne no doloroso grupo dos autoimunes. Uns com diabete tipo I, outros com vitiligo, e por aí vai... O mais amado e mais chegado daquela confraria foi acometido pela esclerose múltipla, há muitos anos atrás. Esse amigo queria ser escritor, e o meu sonho era cinema. Sua teoria era a de que não viemos nessa vida para vivermos a profissão da nossa paixão.

          O ideal inatingível de cineasta foi esquecido. Ele, posteriormente escreveu dois livros, enclausurado pela enfermidade e dela se abstraindo através da escrita, com toda a garra possível. Mas não sei se os publicou depois da última vez, quando nos reunimos pessoalmente. Continua sim, lutando e esperando os avanços da medicina. Otimista, sempre ímpar, lindo e inesquecível.

          Na sexta-feira passada, achei o dr. Jea Myung Yoo, na Internet. E acabei me divertindo com as explicações naquele viés do pensamento oriental. Segundo o dr. Jea , as células T deveriam trabalhar para proteger o nosso corpo. Algo acontece e elas se tornam “confusas”, e aí passam a nos atacar ao invés de nos defender tão somente. O que aciona a agressão é um mistério.

          Isto é, o fator desencadeante de tais enfermidades é uma incógnita. De incógnita em incógnita, na área médica, vamos vivendo e curtindo o dr. Jea Myung Yoo ao nos fornecer essa visão mais suave de muitas doenças graves e incapacitantes. Adorei esse médico pela criação de termos inusitados.

          Por exemplo: não estou com dez quilos a mais! E sim com “fofuras”! Fazendo a dieta correta, as “fofuras” diminuirão de vez. Não é uma graça? Ele sim é um fofo. Muito embora seja um coreano magro. Magrinho. Muito sedutora e criativa essa ponte de terminologias por ele estabelecida. A fusão da visão oriental com a ocidental. O ensinamento de só olhar as coisas positivas das nossas doenças. Poderia ser algo pior. Importa agradecer e seguir adiante.

          Se as pessoas gostam ou não da gente, não tem a menor importância na soma geral do tempo vivido e por viver. Mas é alarmante descobrir que as células T de repente se perdem de si mesmas. Perder o amor da sua vida não é nada. Muito pior é essa tragédia das células T quando transmudadas da sua função original. E as pesquisas precisam avançar cada vez mais. Há milhares de vidas dependendo de tais avanços. Da elucidação das incógnitas vitais.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Retrato de um Vazio




               O que se formou foi o retrato de um vazio. Depois de patéticas tentativas de escrever novas crônicas. Algumas nasceram sem vida. Outras vieram disformes e anacrônicas. Nenhum assunto duradouro.

               A rotina foi feroz e aniquiladora. Onde andarão a desenvoltura, a doçura, a ternura, os anos de clausura? Quantos anos girando em torno do mesmo nada? Todos os esforços, todas as vãs tentativas caíram num abismo sem fim. Lições duras para quem pensava que sabia alguma coisa.

               Como refazer a conta do tempo perdido? Nenhuma anotação importante nas agendas. A ficha demorou a cair. Esforços, empenhos e sacrifícios. Nada foi escrito nos compromissos. Somente uma coleção de espantos na alma. Tanto choque, tanto assombro. Marcação ombro a ombro.

               Muros de ódio sem sentido. Tudo foi tentado. Havia, talvez, pinceladas da sabedoria paterna. Vontade de acolher e proteger. Uma vida de aspirações simples. Sem insensatas manipulações. Cada um responde por seus erros e acertos. Jamais pelas decisões alheias. O que sobra? O cansaço dos confrontos inúteis.

               O poço de carências era profundo. Os dias perderam o ritmo e o vigor. As noites se somavam inertes e mal dormidas. A loucura espreitava nas sombras. A sede de respostas cedeu lugar ao desencanto. Sofrer tanto não muda nada! A chave foi buscar o autoconhecimento. Muita autocrítica e reflexão.

               Todos nós perdemos afetos. Todos partem a seu tempo do espetáculo da vida. Não se pode viver o tempo todo ressentido com quem ficou vivo. Quem quer ser amado deve aprender a amar. Há tantas causas nobres para abraçar e o show deve continuar.

               Nada de obrigações e deveres infindos. Para tanto desafeto e tanta opressão é bom guardar no bolso a palavra NÃO. Chega de vozes agressivas, frases cruéis e desrespeitosas. Tudo tem limite. Infinita e iIimitada só a inspiração.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Para não dizer que não falei das flores



             Foi uma estranha sensação ganhar um ramalhete de flores matizadas em vários tons de azul agremiadas em profusão. No detalhe, cada flor possui um desenho simples, apresentando quatro pétalas simétricas, de onde se ramificam escuras nervuras azuis. Formam grandes capuchos arredondados, unidos por finíssimos cabinhos, dando a ideia de um coletivo alegre e cheio de harmonia.

             Se o tom esgazeado do azul tivesse que incorporar algum aroma, o perfume suave e seco das hortênsias seria sem dúvida, o meu preferido. O perfume da cor azul.

             Não sei de onde veio esta fome de maciez de pétalas. Delicadezas azuis. Equilíbrio entre o céu e mar. Infinitos: mar e céu como signos. A gente pode eleger o azul para ficar triste?

             Em um tempo que dará cada vez mais valor ao esforço individual, porque a força visual de uma florzinha cheia de simplicidade, intrinsecamente ligada a tantas outras me pegou?

             O egoísmo é fácil e nos dará sempre infinitas imagens. O altruísmo vem permeado de ceticismo. Estou no plano intenso das sensações. Há uma falta de perspectivas, e o tempo é pleno de interrogações.

             É complexo descrever sentimentos antagônicos e extremados. O desdobramento parece não ter fim. Chegou um tempo sem poesia e, no entanto senti necessidade de escrever uma crônica poética onde a crueza da realidade atual não nos envolva como um fato consumado.

             Mas persiste uma sensação de exílio. De uma solidão estrangeira mesmo estando dentro do Brasil. Tudo o que pôde ser desfigurado e destruído rapidamente, não cedendo espaço à reflexão, criou um imenso vazio.

             Chegamos a um tempo de flores carnívoras, porque só o mau cheiro atrai tantas moscas afoitas. Tudo é devorado, triturado com sofreguidão.

             Não é mais um tempo de flores conglomeradas. É um tempo-orquídea que se nutre da sombra alheia. Minando a capacidade e a força dos que tentam ficar em pé, confiando apenas na sua própria dignidade.

             Neste tempo sem poesia, resulta inútil expor a palavra machucada e fragmentada. A cada pétala. De flor em flor.

domingo, 26 de agosto de 2012

Rose

 



               Digam o que disserem, sei que um dia perdi a Rose. Nunca soube se o nome dela era realmente este, afinal, as crianças de rua costumam arrumar os seus próprios codinomes para esquecer uma infância triste, cheia de violências brutais que a nossa sociedade indiferente costuma denominar “destino”.

                Mas, na minha saudade, ela sempre será Rose, a menina que conheci nas ruas do centro de São Paulo. Ela sabia mais ou menos a hora do meu almoço. Conhecia o prédio onde eu trabalhava e vinha procurar por mim. Rose tinha os cabelos encaracolados e curtinhos. Deveria ter entre cinco a seis anos de idade. Os olhos tristes e imensos emolduravam um rostinho sério onde nunca vi sequer a sombra de algo semelhante a um sorriso.

               E assim me apaixonei por Rose. Como a gente costuma se apaixonar pela idéia de ter um filho. Ela só me pedia diariamente um refrigerante, e nada mais. Nunca aceitou um prato de comida ou um sanduíche. Depois eu soube que dormia habitualmente na Rua Sete de Setembro, entre mendigos sujíssimos e totalmente entregues ao vício da bebida.

               Tencionava trazer Rose para o interior. Firmou-se em mim a vontade de livrá-la daquela infância crua e desumana. Mas, um dia, Rose não apareceu, e era sempre tão pontual. E não surgiu no dia seguinte. Foi naquele tênue início, quando começava a despertar a sua confiança, foi ali que a vida nos separou. 

               Perdi Rose na cidade grande que tudo devora. Certamente a levaram a algum outro ponto da cidade. Indaguei os comerciantes locais. Nada. Não deixaram pistas. Desapareceram.

               Entre as mais tristes e pungentes lembranças da minha vida, ainda me vejo vagando nas ruas do centro da cidade, chorando no meio da multidão e procurando por Rose. Havia chegado tarde demais? Falhei com Rose. Não pude resgatá-la e nem lhe proporcionar a dignidade pretendida.

               Muitas vezes, ainda me pergunto: o que aconteceu com ela? E a pergunta fica ecoando no ar: o que aconteceu com a Rose? E a resposta é um suspiro profundo. A infância feliz que não pude lhe oferecer é uma dor inconclusa.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

100% ALGODÃO




               Quando surgia um branco total na mente, e não conseguia escrever absolutamente nada vezes nada, sempre suspirava e lançava a estratégica frase: “um dia escreverei a minha crônica sobre o 100% ALGODÃO”. A senha foi criada para resumir a falta de inspiração. Era o meu código de ensimesmar.

               Se um dia prometi escrever, está prometido. Será escrito. Vamos encarar o desafio. A explicação mais plausível da associação ao algodão, talvez derive do horror ao: “100% POLIÉSTER”, impresso nas etiquetas das blusas. Significa o abafamento total da minha pele, alérgica a tecidos sintéticos. Principalmente confecções com golas na região da nuca costumam ocasionar muita dor de cabeça e enjôos sem fim.

               Sou obrigada a ler etiquetas ao comprar a mais banal das blusas. Viscose? Rayon? Elastano? Poliamida? Acrílico? Dá para confiar nas porcentagens da descrição? Não. Qual é o meu truque? Assopro o tecido entre as mãos. Não passou o ar entre os dedos? Então não é algodão. O encanto pela blusa morre cem por cento em segundos. 

               A crônica 100% ALGODÃO simboliza o texto arejado. Homenagem cálida e cheia de frescor aos nossos vestidinhos de lese branco, aqueles tecidos furadinhos. Os decotes e as mangas arrematados com o delicado bordado inglês. Puro algodão bordado. Aquela graça. As crianças nascidas no tempo do 100% algodão. 

               Sempre busco a mesma sensação suave e desejada no corpo do texto: deve vestir confortavelmente a alma. As palavras também respiram, transpiram, exalam perfume ou um suor tóxico. Depende do assunto e da abordagem. Do filtro, dos poros, da transcendência. E, principalmente: da sensibilidade.

               O lado 100% POLIÉSTER talvez represente o difícil trato com tudo o que não é natural. O lado trancado, abafado e irrespirável da vida. A tessitura que faz mal e sufoca. Paralisa e asfixia tudo o que é vivo, respira e transpira. Ocasiona ânsia, mal estar e quase desidratação. 

               É a dialética inapelável. Os extremos e os contrastes. E agora que consegui escrever a crônica “100% Algodão” , algum leitor perguntará porque esmiucei um assunto tão banal. Será? Cada vez mais deveríamos priorizar os sentidos, o conforto e o bem estar. A nossa pele acariciada e reconfortada agradecerá, sem dúvida alguma.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Vestido de Noiva



              Observar o vestido de noiva no brechó propiciou uma sensação no mínimo curiosa. Sempre a frase me recorda de imediato a peça do Nelson Rodrigues. A chave não é o traje em si. Não é a peça montada com tecido. O arquétipo é a peça de teatro. Primeira associação da mente. O vestido simbolizando a disputa entre duas irmãs pela posse do mesmo homem.

              Tenho uma relação avessa com esse tema. Aliás, é estranha a história: casar ninfeta era o desejo ardente de uma prima. A fantasia pretérita, não mais cabia nos seus vinte e um anos. Aos catorze anos fui obrigada a vestir um sonho que não me pertencia. O vestido guardado na caixa era uma espécie de luxo reservado. Justo, justíssimo na cintura. Enfeites e acabamentos ásperos machucavam a pele de quase menina.

              Tentava sorrir crucificada no vestido incompreensível. Naquela invisível costura entre as duas fases. Nem menina e nem mulher. Minha tia entrou, se chocou, e chorou. Gritou com a filha. Nunca mais me casaria de noiva, afirmou. Meneando a cabeça com tristeza, observava a minha frágil figura no traje completo: véu, luvas, sapato de cetim, buquê e nem sei o que mais o quê.

              Minhas lembranças são meio vagas dessa fase de “noiva” sem noivo da tal prima. Tempos depois ainda me coagiu a experimentar outra peça alugada, ou emprestada. Deve ter nascido ali, naqueles rituais entediantes e incrustados, a total indiferença pela coisa.

            Se nos romances policiais o criminoso é sempre o mordomo, nos romances errados, o culpado é o azarado vestido. Até me fez lembrar os relatos de uma moça que conheci e foi miss de uma cidadezinha de Minas Gerais. Linda, linda! Saiu do apartamento e rumou para o embarque em Congonhas. Perdeu o avião; voltou. Flagrou o maridão com outra. Dentro do quarto do casal. Terminou o casamento, e, para fechar com chave de ouro, jogou o vestidão caríssimo no lixo.

             Com o passar dos anos, consegui entender que cerimônia de casamento é um ritual antigo. As pessoas guardam as lembranças daquele momento por toda a vida. Movimenta negócios e gera milhares de empregos. É o momento glorioso da noiva.

              De minha parte, só posso dizer que fiz um juramento e cumpri: jurei nunca mais passar nem perto dessas roupas de nubentes. Assim tem sido por décadas e décadas. Amém.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Depois que ela se foi



            Depois que ela se foi, tudo se foi com ela. Somente restou esse silêncio abissal. Nenhuma música de rock. Sequer uma balada. Nem passadas rápidas, correndo para cá e para lá. A cama vazia atesta a ausência. A mesa sem os cadernos espalhados, sem o molho de chaves, Nenhum tênis jogado no chão do quarto.

            O suave perfume da juventude se desprendeu dos lençóis. E o doce aroma dos cabelos não mais flutua no ar. A delicada figura não corre, não ri, não pula mais no corredor. Não dança e não caminha pela sala. Sem ela, a casa é inodora, insípida e incolor. Mas não é indolor. Dói a solidão dos objetos antes por ela tocados. A vida ausente. Sem revoluções.

            O telefone está mudo desde então. Sumiram as amiguinhas com suas risadas, os compromissos. O som de passadas nos saltos das botas de verniz. Todo aquele exército de amigas e inimigas. O repertório das brincadeiras. Ficou esse tempo pós-tudo e era preciso aprender a voar com as próprias asas. Quem não sabe? As circunstâncias são outras.

            Depois que ela se foi, os seus olhos claros e oblíquos me fitam das fotografias espalhadas pela casa. O sorriso cristalizado nos dentes perfeitos. Simulacros da meiga presença. Presente mesmo só o gatinho, de olhinhos também simétricos. E obliquamente felinos. Obliquidades semelhantes. Ternas e adocicadas.

            As roupas rejeitadas e esquecidas no guarda-roupa já começam a ganhar aquele denso cheiro de mofo. Na estante, livros repousam desalinhados e distraídos. Entretanto, a atmosfera do quarto segue alegre. O palhaçinho sorridente continua pendurado no trapézio. Os enfeites da Índia, as almofadas chinesas, o quadrinho de mangá: tudo no lugar. E a caixinha de música abriga e protege a eterna canção.

            Depois que ela se foi, todas as bonecas e os vestidinhos foram cuidados. Estão comoventes de tão lindas! E guardadas zelosamente nas caixas. Uma espécie de carinho secreto. Gestos estranhos acontecem nesse vazio. Como seria a conversa com novas meninas em flor? Não existe uma receita. O momento passa e elas seguem risonhas e descontraídas pelas ruas. Tudo continua. É bom que seja assim.

            Estranhamente, algo que partiu resolveu voltar. As palavras eram minhas jóias. Mas há anos atrás, soberanas e ciumentas impuseram a sua exclusividade. A Arte não divide afetos. E levou consigo o seu séquito avalassador.

            Ressurgiram assim: só depois que ela se foi.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Uma Rosa é uma Rosa é uma Rosa


                                         
              Olhei para o quadrinho de rosas na parede. Saí da loja, mas voltei tomada de violento impulso. Decidi que as rosas seriam minhas e pronto. E deveria salvar a pintura de outro comprador com menor grau de paixão e sensibilidade.. Fosse lá quem fosse. Retornei e arrematei no auge daquela epifania.

              Uma rosa é uma rosa é uma rosa. Um dia escreveu Gertrude Stein. Não precisa nenhuma definição a mais. Quem pintou, refletiu toda a sua delicadeza nas linhas. E o quadro foi pintado por Otília, em 1952... Quem imaginaria tão longínqua data?

              E aí, surgiu o devaneio: imaginei a autora pintando as flores. Painel de suavidades: pétala por pétala. A jovem noiva mergulhada no doce aprendizado de pintar a óleo. Um dia, em breve, ela pretenderá decorar o seu futuro lar.

              Há tantas promessas no primeiro quadro dessa moça! Comovente o seu empenho em acertar e jamais errar. Na cor, na sombra e luz, nos detalhes mínimos de um botão de rosa. O verde musgo das folhas se derrama além dos limites do desenho a lápis.

              Vi Otília delicada e lindíssima, em um vestido godê guarda-chuva, calçando sapatos de bico fino. Tanto tecido girando displicente e dançando sensualmente ao redor da cinturinha flexível. Ela se agita com frenesi diante do cavalete, quando finalmente toca a campainha.

              O noivo está atrasado. A família se diverte na sala de piano que dá vista a um primoroso jardim. Otília larga os pincéis, e corre conferir a sua apresentação no espelho oval. Sorri para a sua estonteante figura e volta para o quadro se fingindo distraída.

              Entra o noivo todo sorridente, chapéu na mão, ansioso e com vontade de tirar o paletó. Disfarça o calor que o agoniza e lhe aquece as vestes. Enxuga o suor do rosto com um lenço muito alvo, e se recompõe por inteiro, pois sua sogra pode não achar de bom tom o noivo expor a camisa sem a sua permissão. Assim vi.

              Comprei o quadrinho para minha mãe, como o sonho do passado de alguém. Achei o lugar ideal a ser observado por ela. Confidenciou a sua vontade de partir logo deste mundo. Não anda ligada nem no passado, presente ou futuro. Enquanto estamos aqui, o importante é sonhar. Não custa a gente tentar ficar sempre um pouquinho mais. Foi a mensagem do meu gesto.

              A pequena obra tem os pentimentos graciosos da Otília. Adoro os primeiros ensaios eternizados em uma tela. A humildade da experimentação. Os acertos são tão arrogantes! Voltei para a casa sob o seco impacto da realidade. Deixei para as rosas a doce missão de recapturarem minha mãe para a eterna festa da vida.

O Blog do Max


      
         
            Max me fita sério e solene com seus olhos verdes e nublados de sono. Escrevi dúzias e dúzias de e-mails sobre esse gato. O pessoal simplesmente adorava. Todos pediam o “Blog do Max”: sucesso total as travessuras do felídeo. De certo modo, desse estranhamento com o bicho foram nascendo pedidos de conselhos e esclarecimentos sobre a conduta animal.

            Não tenho lá modos muito civilizados. Quando chegou a nossa casa, minha natureza irascível bateu de frente com a irracionalidade do Maximinho. Três exatos dias para aceitar essa convivência forçada. Um em relação ao outro. Finalmente, no terceiro dia, colocou a patinha no dedão do meu pé. Estava selada a nossa amizade. A verdadeira dona do bicho respirou aliviada porque precisou deixar o gato aqui este ano e estava temerosa da adaptação do Máximo Gorki. Como pode perceber o leitor, esse bichano tem um nome de alto prestígio literário.

             De início, Max sempre me pareceu aquele gato listrado do desenho “Alice no País das Maravilhas”. Ora em cima do microondas, ora em cima da geladeira. Ou repousado sobre o laptop, ou atrás das cortinas. Como não se apaixonar pelo gatinho? Após infinitas emboscadas, botes, e números acrobáticos, percebi o objetivo dele. Tanto preparo diário com vistas a abocanhar um dia, algum passarinho distraído. Um troféu de caça. Esse é o sonho máximo do Máximo Gorki.

             Enquanto vivo, Max sonha com impossíveis pássaros ( que não pousam diante dele jamais). E por meu lado, sonho com palavras aladas e inatingíveis. Fugidias e erráticas. E a reflexão tomou o lugar da palavra escrita. Tantas coisas parecem profundamente tolas, mas se enraizaram no ser humano sob a forma de hábitos nefastos e alienantes.

            Mas, voltando ao tema, nunca aproveitei os e-mails escritos sobre o Max para transformá-los em blog. Fiquei observando esse instinto primitivo de demarcar território, o treino para as caçadas. As leis da sobrevivência. Infelizmente, o ser humano mata e morre por territórios. E homens caçam homens há séculos! Pelos mais variados motivos.

            Do desencanto com esse imutável estágio da existência humana , nasceu o meu carinho por este felino. Ele faz parte das três coisas mais delicadas que a vida me presenteou recentemente. Apesar de tudo, a delicadeza se faz presente todos os dias em nossas vidas. É só educar o olhar.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

O Homem das Panelas


 

                   O meu mundo ficou diferente depois do homem das panelas. Como uma referência de sólida felicidade. Vez ou outra ainda relembro as batidinhas na janela do sindicato. Nessa viela funcionava uma entidade que abrangia várias categorias e, naquele exato momento, três ou quatro moças aguardavam para serem atendidas pelo advogado, quando ouvi alguém chamando lá fora.
Era um sorridente homem de terno. Estava limpo, bem arrumado e não me pareceu um mendigo. Era moreno, expansivo e alegre. E com um rápido aceno me explicou: ele tinha tudo, fez questão de justificar antes de pedir, só lhe faltava umas panelas! Havia tanta vida e tanto brilho no olhar daquele homem! Ele ergueu as mãos e os olhos para o céu, completamente extasiado, enquanto dizia isso. Foi impressionante aquele arrebatamento, aquelas cintilações de pura energia e felicidade no seu rosto.

                    Se eu tinha panelas para doar? Não tinha. Mas lancei mão de umas três panelas da cozinha e esse homem era todo contentamento e certezas quando as colocou debaixo dos braços cheio de efusão. E, todo pleno, partiu. Antes, agradeceu e seguiu ruela abaixo com o seu tesouro final. Segui a sua imagem. Foi caminhando ternamente abraçado com as panelas até sumir ao cair daquela tarde.
As moças riram divertidamente na sala de espera. Umas delas comentou o meu exagero: havia fornecido panelas demais! A mais engraçada e que se mantinha de braços cruzados e as mãos repousadas sobre colo, comentou: agora ele tem tudo, se só precisava de panelas. Nossa! Filosofou às gargalhadas quanta coisa necessitava! Muito mais. Outros sonhos de consumo. Panelas? Jamais!
Era misteriosa e inexplicável a força catalisadora do homem das panelas. O homem que tinha tudo! E nós rimos conjuntamente em homenagem a ele, à sua felicidade terrena que nos contagiou. Felizes e felizes. Nada menos e nada mais.
E a verdade singela era tão enternecedora. Jamais alguém havia dito tão enfaticamente: eu tenho tudo! Foi comovente presenciar aquele momento de profunda felicidade de um ser humano tão completo em si mesmo. Os seus olhos cintilaram com o mesmo brilho da pureza de diamantes. Nunca mais revi o homem das panelas. O homem que tinha tudo. Como um anônimo Carlitos, desapareceu